Texto: Julio Huber / Fotos: Julio Huber
“Eu estou viva graças ao mutirão”. Essa frase da aposentada Tereza Littig Jarske resume o sentimento de muitas das mais de 100 mil pessoas que foram beneficiadas pelo Programa de Atendimento Dermatológico a Pacientes Pomeranos (PAD), projeto gratuito, inédito no Brasil e que é desenvolvido há 30 anos no Espírito Santo.
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Durante esse tempo, médicos e estudantes de medicina da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) saem do hospital e da universidade e realizam, de forma voluntária, uma vez por mês, um mutirão de consultas e cirurgias para tratar o câncer de pele, uma doença típica de um país de clima tropical como o Brasil, e que é mais comum em descendentes de origem europeia, como é o caso dos pomeranos, que vivem em diversos municípios do Espírito Santo.
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Com a pele branca e trabalhando diariamente no sol, essas pessoas possuem todas as características para terem câncer de pele. Há 30 anos, quando o projeto foi iniciado, algumas situações de pessoas que chegavam até o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), em Vitória, eram quase que impossíveis de serem tratadas, já que as lesões causadas pelo câncer de pele já haviam tomado boa parte do corpo.
Curiosos em buscar saber o motivo de tanta incidência da doença em trabalhadores rurais do interior do Estado, dois médicos, juntamente com outros profissionais, entraram em uma Kombi e resolveram ir até essas comunidades do interior. Foram mais de 150 quilômetros, a maioria de estradas precárias, até chegarem a regiões onde perceberam que algo precisava ser feito.
Médico, professor e coordenador do projeto, Luiz Fernando Soares de Barros, 72 anos, é um dos dois profissionais que tiveram essa ideia, juntamente com o médico Carlos Cley Coelho. “No início, vínhamos ao interior em uma Kombi. Eram no máximo 10 pessoas. Hoje estamos em mais de 100 pessoas envolvidas em cada ação, sendo mais de 40 alunos de medicina”, contou Luiz Fernando.
Segundo ele, antigamente os moradores dessas regiões ficavam isolados em suas comunidades. “Muitos apresentavam lesões grandes, como câncer de orelha, de boca, e em situações às vezes vegetativas. E eles chegavam para nós sem condições de tratamento. Realizávamos apenas cirurgias higiênicas, para retirar o câncer”, relatou.
Hoje em dia, esses pacientes estão chegando mais cedo para os tratamentos, evitando que eles tenham grandes lesões. Com isso, o programa tem dado mais qualidade de vida a milhares de pessoas e outras milhares já tiveram suas vidas salvas. “É um projeto abençoado. Cada vez que você está fazendo um serviço deste, você recebe mais do que dá”, frisou o médico e professor.
Além de realizar consultas e diagnosticar os possíveis casos de câncer de pele, também são realizadas cirurgias durante os mutirões do PAD em cada município visitado durante todo o ano.
Em Serra Pelada, Afonso Cláudio, última localidade visitada pelo grupo de voluntários, nos dias 14 e 15 de abril, foram feitos 345 atendimentos, o que resultou em 80 cirurgias. Todas foram feitas em um centro cirúrgico improvisado em uma sala de aula, no local cedido pela Igreja Luterana para a realização do mutirão.
“Fazemos cirurgias em condições bem simples, em salas adaptadas, mas tudo é feito com muito cuidado. Todas as peças que tiramos são enviadas para examinar citologicamente, o paciente é acompanhado e nós nunca tivemos, em 30 anos, nenhum problema, nenhum óbito. E vale lembrar que a maioria dos atendimentos é de pessoas de idade. Por isso que digo que é um projeto abençoado”, diz orgulhoso o médico Luiz Fernando de Barros, coordenador e um dos idealizadores do projeto.
CRIOTERAPIA – Outra forma de tratamento imediato a tipos de câncer de pele mais simples é o uso da crioterapia. Em 2017, durante os 11 mutirões do PAD realizados no Estado, foram feitas 6.541 cauterizações, um número bem superior a 2016, quando foram realizados 3.883 procedimentos.
O estudante do 12º período de medicina, Jayme Mendonça Ramos, 23 anos, foi um dos responsáveis pelo uso da crioterapia durante o mutirão ocorrido na Associação Diacônica Luterana, em Serra Pelada, Afonso Cláudio, quando foram realizados 643 procedimentos.
“Quando as lesões estão em estágio inicial, fazemos uma abordagem não tão invasiva como a cirurgia. Conseguimos abortar precocemente, queimando com o nitrogênio líquido. Assim, conseguimos retirar a lesão sem o paciente precisar fazer a cirurgia”, explicou Jayme.
Estudantes saem da universidade para salvar vidas e praticar medicina
Além de tratar e salvar a vida de milhares de pessoas nos últimos 30 anos, o projeto ajudou a formar milhares de médicos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Para o coordenador do programa, Luiz Fernando Soares de Barros, que também é professor da Ufes, a experiência para os estudantes servem para toda a vida profissional deles.
“Como já são 30 anos, às vezes encontramos profissionais bem sucedidos, que já passaram pelo projeto, e que pedem para voltar um dia para rever e participar. Às vezes, os alunos aprendem nesse projeto a dar pontos, a ter esse contato direto com o paciente. E tudo isso com toda a orientação dos profissionais que acompanham cada procedimento feito aos pacientes”, contou o professor.
Ele ainda enfatizou que os estudantes de medicina também aprendem o lado social da profissão, pois ajudam a dar mais qualidade de vida a milhares de pessoas que não teriam condições de ir até um hospital. “Eles ficam encantados com o projeto, pois a faculdade veio até as comunidades”, comenta.
Um exemplo é a estudante do 6º período de medicina da Ufes, Amanda Silva Guimarães, 23, que conheceu o projeto na universidade e quis participar. “Essa é minha primeira participação e está sendo uma experiência ímpar. Eu, particularmente, gosto muito de cirurgia, e estou adorando cada minuto que estou aqui. Para mim, está sendo um divisor de águas, pois é a primeira experiência com o paciente”, relatou.
EX-ALUNA VAI COORDENAR PROJETO – Um exemplo de profissionais que passaram pelo projeto e que adquiriram conhecimento para sua carreira é a médica e professora universitária Patrícia Henrique Lyra Frasson, que é cirurgiã plástica e foi uma das estudantes que participaram do projeto. Agora, ela está assumindo a coordenação, ao lado do professor Luiz Fernando de Barros.
“Eu fui aluna do programa e viajei nos três últimos anos do curso. Fiz residência e quando eu terminei a segunda residência de cirurgia plástica eu voltei ao programa, em 2002. Tem um ano que minha vida mudou de pernas para o ar, pois estou assumindo o programa, mas é muito gratificante”, afirmou.
Segundo ela, os estudantes que participam aprendem na prática o que estudam na sala de aula. “É a oportunidade que eles têm de estar atuando em campo e vendo, principalmente, a realidade da população. No ambulatório, eles não sabem como é a vida das pessoas. Aqui é bem mais real para eles e é importante ver a dificuldade das pessoas e a importância do nosso trabalho para essas pessoas”, disse.
Mais de 165 mil novos casos de câncer por ano no Brasil
O Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA)e o Ministério da Saúde (MS) estimam a ocorrência de cerca 165.580 novos casos de câncer de pele não melanoma, que é um tipo de tumor menos letal, em ambos os sexos, para cada ano do biênio 2018-2019.
Esse ainda é o tipo de câncer com maior incidência no Brasil. Estimam-se 85.170 casos novos de câncer de pele não melanoma entre homens e 80.410 nas mulheres para cada ano do biênio 2018-2019.
No Espírito Santo, segundo o Inca, a estimativa é de que surjam 3.390 casos de câncer não melanoma e 170 de melanoma em 2018. A identificação precoce dos casos possibilita o tratamento mais eficaz nos mais diversos casos. E o papel do PAD é extremamente importante nesse aspecto.
“Tem pacientes que, até pela cultura local, não saem de suas comunidades para irem a Vitória. Mesmo quando a gente facilita esta locomoção para o atendimento em Vitória, é complicado, porque a cultura local é de não sair muito. Então, muitas vezes, o programa é a oportunidade que eles têm para se tratarem”, disse a médica Patrícia Henrique Lyra Frasson.
Pacientes têm acompanhamento até o fim do tratamento
Após terem o câncer identificado durante os mutirões, alguns pacientes já passam por cirurgia no mesmo dia. O material coletado é enviado para Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), onde é identificado o tipo da doença. Aí entra o trabalho da Associação Albergue Martin Lutero, que faz o acompanhamento dos casos e é o interlocutor entre a universidade e os municípios.
A coordenadora administrativa do PAD, Vera Lúcia Dttmann Jarske, conta que o trabalho é bastante intenso, mas gratificante. “Como temos o programa todos os meses, articulamos a logística com os municípios, a lista de materiais, a alimentação da equipe, a hospedagem, tudo para o bom funcionamento do mutirão. Cada envolvido faz a sua parte”, explicou.
Após os mutirões, vem o acompanhamento de cada caso. “São recolhidas amostras de todos os procedimentos cirúrgicos feitos nos mutirões. Com um mês, mais ou menos, a gente recebe o resultado da biópsia. Isso é devolvido para o município, que tem a responsabilidade de acompanhar, de dar assistência e providenciar o retorno”, explicou.
Segundo Vera, caso o resultado acuse um tipo de câncer mais agressivo, o acompanhamento é imediato. “Os menos agressivos também são acompanhados. isso inclui agendamento de consulta, translado e, quando é o caso de uma coisa mais grave, o Albergue acolhe esse paciente, acolhe o acompanhante e a família. O paciente fica em torno de 45 dias no Albergue, tempo médio que dura o tratamento”, contou.
Agricultor muda hábitos após orientações
“Eu acordo cedo todos os dias, por volta de 5 horas. Depois das 6 horas já vamos para a lavoura e ficamos até 17h30, mais ou menos. Trabalhamos dia após dia no sol, não é fácil, mas está bom, dá para sustentar a família. Faça chuva ou faça sol, não podemos parar. Trabalhar debaixo do sol não é fácil, mas temos que aguentar”.
O depoimento do agricultor Emílio Kiister, 50 anos, do distrito de Serra Pelada, em Afonso Cláudio, é um retrato da realidade vivida pela maioria dos agricultores do Espírito Santo. Mas, para os descendentes de europeus, a pele clara é um motivo a mais para redobrar os cuidados com a proteção contra o sol.
E desde que começou a trabalhar na lavoura, aos 10 anos, Emilio não se preocupava em se proteger do sol. Os cuidados começaram quando ele descobriu que algumas lesões em sua pele se tratavam de câncer. “No começo, a gente nem sabia o que era a proteção. Depois, quando os médicos começaram a orientar, passamos a nos proteger mais”, conta.
Antigamente, a única proteção contra o sol era um boné na cabeça, mas hoje em dia, os cuidados redobraram, com o uso de protetor solar, roupas longas e chapéus. “Com os anos, as marcas começaram a aparecer no corpo. As primeiras foram há uns cinco anos”, informou. Emílio conta já teve câncer de pele descoberto pelos médicos e estudantes de medicina do PAD.
A reportagem do Montanhas Capixabas esteve na propriedade dele, um dia antes da retirada de mais duas lesões durante mais um mutirão dos voluntários que realizaram uma ação em Afonso Cláudio. “Ouvimos sempre que o câncer pode matar, e nessas horas ficamos com medo”, revelou o agricultor.
No dia do mutirão, Emilio chegou pouco depois de 3 horas da madrugada para guardar lugar na fila. Mas, por volta de 16 horas, ele estava operado e voltava para casa mais aliviado. “Fui bem tratado, foi bom demais. Tomara que esse trabalho continue. Ano que vem estou de volta para fazer a revisão”, adiantou o agricultor.
Agricultor participa dos mutirões há 18 anos
Geraldo Hartivk, 78 anos, morador de Picadão, Laranja da Terra, é um exemplo de como os agricultores pomeranos são beneficiados pelo programa. Ele é acompanhado em vários mutirões pela sobrinha, Delaidia Birca Naitezel, 55.
“Se não fosse o projeto, não sei o que seria de nós. Acompanho meu tio em todos os mutirões há 18 anos. Ele precisa de muito acompanhamento, porque ele pegou muito sol antigamente, e agora precisa se cuidar. Hoje em dia, toda a família já tem mais consciência sobre a importância de se proteger do sol”, contou.