Menos de 30% da população rural conta com rede de esgoto ou fossa adequada

O sítio São João, conhecido como Escola da Floresta, é hoje uma referência nacional de sustentabilidade ambiental. O sítio fica na cidade de São Carlos, no interior de São Paulo, e é visitado por pessoas do Brasil inteiro, que vão até lá para conhecer um pouquinho mais sobre conservação e preservação da biodiversidade. Mas nem sempre foi assim. 

O produtor rural Flávio Marchesin, de 54 anos, conta que herdou do pai a propriedade. Até o ano de 2001, para que os moradores fizessem as necessidades fisiológicas, o sítio contava apenas com fossa rudimentar, conhecida também como fossa negra. Essa fossa é basicamente um buraco por onde são direcionados os dejetos, que caem diretamente no solo ou no lençol freático, sem qualquer tipo de tratamento.

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“Perto do nosso sítio passa um rio e a gente capta água desse rio para irrigação da nossa horta e da psicultura. Então, não tinha sentido a gente poluir esse rio e usar a água dele para irrigar os produtos que tínhamos no sítio”, lembra Flávio.

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Foi a partir daí, há quase 20 anos, que o produtor e a família resolveram procurar auxílio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que ajudou na implantação da fossa séptica biodigestor. A fossa séptica, diferentemente da rudimentar, é um tanque vedado e os dejetos são direcionados e tratados sem contaminar o solo e o lençol freático, além de evitar a propagação de doenças.

Porém, a realidade atual de Flávio e da família não é a mesma vivida por milhões de pessoas no meio rural. De acordo com dados da Embrapa, apenas 28,7% dos moradores dessas áreas contam com rede pública de esgoto e/ou com fossa séptica.

“Ainda assim, a gente precisa olhar esses números com muita cautela, porque esses são números autodeclarados. O recenseador visita a residência, pergunta às pessoas que moram ali se elas têm a fossa séptica e muitas vezes elas respondem que sim, mesmo tendo a rudimentar”, alerta o pesquisador Wilson Tadeu Lopes da Silva, que, há 17 anos, trabalha com o tema na Embrapa Instrumentação.

Atualmente, cerca de 30 milhões de pessoas vivem no campo, mas apenas 20% delas usam soluções adequadas para o tratamento dos dejetos. O levantamento da Embrapa mostra também que cerca de 3,5 milhões de habitantes do meio rural ainda não possuem banheiro – isso equivale a 14% da população do campo. “Falta um pouco desse olhar para a população rural, especialmente das áreas isoladas. Geralmente, essas pessoas são negligenciadas”, lamenta Wilson.

O que muita gente não sabe, segundo o pesquisador, é que o saneamento básico que chega às áreas urbanas passa primeiro pelas áreas rurais. “A água que a gente utiliza na cidade vem das nascentes que, geralmente, estão presentes na área rural. Então, preservar mananciais, nascentes e pensar na qualidade do saneamento rural é também pensar na qualidade do saneamento urbano”, destaca o pesquisador.

NOVO CORONAVÍRUS – O saneamento básico se tornou uma preocupação maior ainda com o momento atual. O Brasil ocupa, hoje, o segundo lugar com o maior número de casos de Covid-19 em todo o planeta, perdendo apenas para os Estados Unidos. A nação verde e amarela já registra mais de meio milhão de casos confirmados da doença e quase 30 mil mortes confirmadas.

“Estamos vivendo um momento totalmente diferente no Brasil e no mundo. E o que isso tem a ver com a falta de saneamento básico? O Brasil talvez tenha a infraestrutura mais atrasada. Podemos dizer que a grande solução do esgoto, hoje, é jogá-lo na natureza que ela cuida”, ironiza o presidente do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos.

Em um país com 209 milhões de habitantes, metade ainda não possui serviços de tratamento de esgoto. Segundo informações do Trata Brasil, somente 46% do volume de esgoto gerado é tratado. Além desse problema, 35 milhões de brasileiros ainda têm que lidar com a falta de acesso ao abastecimento de água. E a realidade é ainda mais assustadora para quem vive nas áreas periféricas e rurais.

“Como é que essas pessoas podem se higienizar, num momento de pandemia, se elas não têm água?”, questiona Carlos. “Muitas dessas pessoas usam água de poço, de cacimba, de cachoeira, de rio. Além de não se higienizar contra o coronavírus, elas podem adquirir outras doenças que são tradicionalmente transmitidas pelo esgoto doméstico”, lamenta.

Classificada por ele como a maior pandemia dos últimos séculos, o novo coronavírus escancara uma realidade difícil para quem, muitas vezes, é invisibilizado pelo poder público. “Infelizmente, a falta de saneamento tem a ver com esse momento. Quando você fala para a população que a principal ação de proteção é o isolamento e a higiene, especialmente a das mãos, como fazer com quem não tem água? E milhões de brasileiros não têm acesso a ela”, lembra Édison Carlos.

MARCO LEGAL – No Congresso Nacional, antes do início da pandemia, os parlamentares discutiam o futuro do saneamento por meio do Projeto de Lei 4.162/2019, que institui um novo marco legal. A previsão é que ele volte a ser centro de discussões e que tome forma ainda em junho.

Entre outras regras, o texto determina que a regulamentação do setor, hoje uma atribuição dos municípios, se torne responsabilidade do governo federal, por meio da Agência Nacional de Águas (ANA). Ela ficaria responsável por regular as tarifas cobradas e estabelecer mecanismos de subsídio para populações de baixa renda.

Para a pesquisadora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV/CERI) Juliana Smiderle, o PL visa desenvolver o ambiente regulatório do país para reduzir a percepção de risco e atrair investimento para o setor.

“Isso por conta do déficit que a gente vive. Os recursos públicos para investimento em saneamento são cada vez mais escassos. Com isso, há a necessidade de atrair investimentos privados para o setor”, defende. Juliana acredita que isso fará com que cresça a competitividade no setor. “Com a competição, ficará mais fácil chegar ao objetivo, que é a universalização do serviço”, reforça.

Ela destaca que a aprovação do PL é apenas o primeiro passo para essa competitividade. “Se o projeto for aprovado, vai permitir que isso aconteça. Porém, não é garantia que haverá de fato expansão e o aumento na qualidade na prestação dos serviços. Para que isso aconteça, é imprescindível uma regulação adequada e forte, contratos bem construídos e com metas bem definidas, fiscalização. Infelizmente, não é o que observamos hoje em dia”, opina.

O texto prevê, ainda, que os estados podem definir “microrregiões”, com a criação de “blocos de municípios”, para atrair o interesse da iniciativa privada. Vale ressaltar, entretanto, que nenhuma empresa pode deixar de atender, à revelia, determinado município, sob o risco de ter o contrato de concessão cancelado. Entre os critérios que poderão ser utilizados, estão o pertencimento à mesma bacia hidrográfica, vizinhança geográfica ou mesmo uma combinação entre localidades superavitárias e deficitárias.

Texto: Jalila Arabi/Agência do Rádio Mais

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